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O desafio da assimetria regulatória entre países

Por Leonardo Edde* E Luciana Soares De Souza**

Durante o Marché du Film, grande evento da indústria cinematográfica mundial que aconteceu em maio durante o Festival de Cannes na França, um painel intitulado “Foco no Brasil” reuniu Joelma Gonzaga, Secretária do Audiovisual, Eros Ramos Tomaz da Silva, representante da ApexBrasil, Igor Trabuco Bandeira, Chefe de Divisão do Instituto Guimarães Rosa (Itamaraty), além de representantes homólogos do lado francês. O anúncio principal: um novo acordo bilateral de coprodução entre a França e o Brasil, que incluirá, além da já existente coprodução em filmes, a possibilidade da coprodução em séries. Aplaudidíssimo, sobretudo pelos produtores brasileiros presentes no evento, a redação deste novo acordo entre os dois países aponta para a importância da regulação do streaming no Brasil, já que na França o setor já se encontra regulado, em sua terceira revisão.

Com um atraso de pelo menos 10 anos, o corpo normativo do audiovisual brasileiro se atrofiou e segue tentando equilibrar o jogo de forças entre a produção nacional e a exploração de seu mercado, em um contexto que ficou para trás. A entrada e consolidação das grandes plataformas de streaming como fortes players na indústria audiovisual alterou radicalmente a cadeia de produção, no mundo inteiro. Outros países que, como Brasil, adotam, historicamente, uma política de proteção de mercado já atualizarem sua regulação para incluir estes players e o resultado é positivo.

A França, um dos países cujo modelo de regulação sempre serviu de inspiração para o Brasil, vem aplicando uma política cuidadosamente construída para regular a entrada das plataformas de streaming em seu mercado. Alguns princípios norteiam a regulação na França, como o respeito às janelas de exibição e a alocação dos subsídios de forma escalonada, com percentuais mínimos pré-estabelecidos para apoios a roteiristas, produtores independentes, coproduções internacionais, desenvolvimento de projetos, curtas-metragens, grandes produções e as produções diretas das plataformas. O resultado desta regulamentação, que é complexa e cuidadosamente segmentada, é um visível fortalecimento do setor e um aumento significativos dos investimentos em todos os níveis da cadeia de produção, do roteirista aspirante às séries de ocupação de mercado, com alto valor agregado.

A seguir, uma visão geral dos textos em vigor hoje na França referentes às plataformas de streaming, que estão sendo igualmente implantados em outros países da Europa.

Na França, as plataformas de VOD, chamadas de SMAD, estão sujeitas (i) à « taxe video » ou imposto sobre o vídeo; e (ii) a obrigação de alocação direta de recursos em produções cinematográficas e audiovisuais, impostas pelo decreto “SMAD”, sigla que designa os serviços de mídia audiovisual sob demanda[1].

O imposto sobre o vídeo[2] foi criado em 1993, sendo, originalmente, voltado às vendas e aos aluguéis de vídeo físico (VHS, DVD, Blu-Ray, etc.). A partir de 2014, considerando a desmaterialização do vídeo, este imposto foi estendido aos serviços de VOD instalados na França e, em 2017, em conformidade com a Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual» (DSCSA) da União Europeia, também às plataformas de VOD instaladas fora da França, mas que oferecem serviços no território francês (Netflix, Amazon, Disney+, etc.).

Em 2020, a alíquota do imposto sobre o vídeo passou de 2% a 5,15% sobre as receitas com assinaturas e/ou com a publicidade arrecadadas pelas plataformas. Os recursos deste imposto são administrados pelo CNC (Centre National du Cinéma et de l’image Animée), órgão público cuja principal missão é fornecer apoio ao cinema e ao audiovisual. Os valores arrecadados pelo CNC são alocados às produções francesas, europeias e estrangeiras em coproduções por meio de diversos mecanismos de apoio automático (sistema de pontos atribuídos às produtoras) e de apoio seletivos (critérios qualitativos, sujeitos à apreciação de comissões)[3].

Além do imposto sobre o vídeo, desde 2021[4], as plataformas de VOD são obrigadas a alocar um percentual de até 20% (15% para as AVOD[5] ou FVOD) das receitas obtidas no território francês para o desenvolvimento da produção de obras cinematográficas e audiovisuais europeias ou originais em língua francesa (Decreto SMAD de 2021- ARCOM[6]). Embora algumas plataformas, como Netflix, já investissem espontaneamente em produções locais[7] do tipo “originals”, o decreto estipula a distribuição dos investimentos entre cinema (20%) e audiovisual (80%) e, ainda, destinando uma parte dos recursos para obras independentes ou obras produzidas por produtorasindependentes, dois conceitos que o próprio decreto estabelece.[8] Ou seja, se a plataforma faturou 800M€ no ano anterior, o investimento no setor será de 160M€. Destes, 32M€ irão para o cinema e 128M€ para o audiovisual. Da parte destinada ao cinema, ¾ (três quartos) devem ir para o desenvolvimento da produção independente de acordo com critérios ligados à obra e/ou à empresa produtora. Da parte destinada ao audiovisual, 2/3 (dois terços) devem ir para o desenvolvimento de obras independentes.

A obrigação de investimento comporta não somente a produção, mas também, e de forma limitada, outras atividades, como o desenvolvimento de roteiro, a restauração de obras do patrimônio cinematográfico, a acessibilidade das obras às pessoas com deficiência, entre outros. O principal ponto é o de garantir que a maior parte vá para as obras e produtoras independentes. Ao definir o conceito de independente, o Decreto evidencia a importância de se respeitar as janelas de cada segmento. Isso valoriza o setor e permite a criação de valor sobre a obra, criando um círculo virtuoso para o cinema e para o audiovisual.

De forma complementar, foram regulados outros pontos que caracterizam a forma de contratação das plataformas norte-americanas como: os “buy outs”, a tendência a chamar de “original” um projeto que nasce de uma produtora local, licenças de distribuição exclusivas sem limitação de tempo, entre outras características que, a longo prazo, minam a força criativa e econômica do setor.

Tanto a taxa de vídeo quanto a obrigação de investimento direto já faziam parte das obrigações às quais estavam sujeitas as empresas francesas do setor, i.e. as TVs, o cabo, as plataformas de VOD com sede na França. Com a chegada das plataformas norte-americanas, o desequilíbrio foi imediato, já que, instaladas fora do território da França, escapavam, em um primeiro momento, da incidência destas normas. No contexto europeu, as plataformas foram enquadradas em uma situação de concorrência desleal em relação aos demais players locais do setor, o que acelerou os ajustes na legislação.

Na França, a regulamentação foi aplicada e as plataformas seguem as regras, desenvolvendo em parceria com os produtores, canais e demais players locais, novos modelos de produção e exploração das obras — um ambiente de crescimento e fortalecimento do setor. Exemplo a ser melhor estudado pelo Brasil, especialmente às vésperas da assinatura de um novo acordo de coprodução entre os dois países, e das comemorações de mais um ano do Brasil na França, previsto para 2025.

Que a adoção de mecanismos de regulação do streaming chegue a tempo de impedir que a atual assimetria regulatória entre os países acabe por permitir o desvio de finalidade do tão esperado acordo, cujos benefícios devem ser repartidos entre o público, o mercado e os produtores independentes locais dos países signatários.

* Leonardo Edde é produtor, presidente do SICAV – Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual, e vice-presidente da FIRJAN.
** Luciana Soares de Souza é advogada na área do entretenimento, mora na França desde 2018 onde atua na área do audiovisual, negócios e tecnologia.


[1] É considerado um serviço de mídia audiovisual sob demanda (SMAD) qualquer serviço de comunicação ao público por meios eletrônicos que permita a visualização de programas em um horário escolhido pelo usuário e mediante solicitação, a partir de um catálogo de programas, cuja seleção e organização são controladas pelo editor do serviço (plataforma). Os serviços e AVOD ou VOD gratuito entram parcialmente na definição e estão sujeitos a percentuais menores.

[2] Art.1609 sexdecies B do Código tributário Geral da França

[3] Além da taxa de vídeo, que tem por alvo hoje principalmente as plataformas de VOD, o CNC arrecada e gere as seguintes contribuições: taxa dos canais de televisão (5,15% sobre as receitas de publicidade), taxa dos difusores de televisão e taxa sobre as entradas de cinema (10,72% sobre o preço do ingresso). A partir de 2024, 3 destas 4 taxas foram reconceituadas e passarão a ser cobradas na forma de 6 taxas distintas. Em 2023, o CNC distribuiu 715 milhões de euros no setor, entre cinema, audiovisual, formação, coproduções, curta metragens, etc. (vide: www.cnc.fr/professionnels/etudes-et-rapports/bilans/bilan-2023-du-cnc_2190717 )

[4] Para que esta regulamentaçao fosse possivel na França, a UE precisou alterar o art.13 da Diretiva SMA, permitindo que cada pais da UE regulasse a obrigaçao de investimentos em seu territorio.

[5] Arcom firmou um acordo com Google Play e You Tube Movies. A Arcom entende que só uma parte da oferta destas plataformas estão sujeita ao Decreto.

[6] www.arcom.fr/television-et-video-la-demande

[7] Serie Marseille 2019.

[8] Segundo o decreto SMAD, os recursos podem ser alocados para as seguintes finalidades: (i) compra de direitos de exploração da obra, com contrato assinado antes do inicio das filmagens para obras cinematográficas e antes do fim das filmagens para as obras audiovisuais; (ii) investimento em partes do produtor com compromisso contratual assinado antes do inicio das filmagens para obras cinematográficas e antes do fim do período de filmagens para as obras audiovisuais; (iii) compra de direitos de exploração que não sejam os mencionados no primeiro parágrafo, incluindo somas pagas aos detentores de direitos autorais por utilizações secundarias; (iv) financiamento da etapa de escritura e desenvolvimento; (v) adaptação de obras para deficiente auditivos e visuais; (vi) dublagem, legendagem e promoção das obras investidas, até o limite de 2,5% do valor total da obrigação; (vii) financiamento de formação de autores (roteiristas, diretores), até o limite de 2,5% do valor total da obrigação; (viii) restauro e guarda de obras originais do patrimônio cinematográfico e audiovisual de língua francesa.

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