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A VIDA DOS OUTROS

 

— Os caminhos da Marina e do Chico se cruzaram no passado e, mesmo que ele apareça em apenas duas cenas, terei que ter a autorização da família dele para tê-lo em meu filme — explica a coautora (com Walter Carvalho) de “Cazuza — O tempo não para” (2004), que recria a trajetória do trágico ídolo da MPB. — A não ser que você tenha um bom relacionamento com as pessoas relacionadas ao personagem que você deseja retratar, fazer um filme sobre alguém famoso no Brasil ainda é muito complicado.
 
Os contratempos de Sandra ajudam a entender a dificuldade da cinebiografia, há décadas matéria-prima da indústria do cinema americano, por exemplo, para se firmar como um subgênero popular no Brasil. Enquanto Hollywood enche os cofres com títulos como “Lincoln”, de Steven Spielberg, sobre o presidente abolicionista, e “Sete dias com Marilyn”, de Simon Curtis, que recria os bastidores das filmagens de “O príncipe encantado”, com Marilyn Monroe, só para citar dois casos recentes, os realizadores brasileiros precisam driblar o aparato legal que protege a imagem de figuras públicas.
 
— A lei brasileira é dúbia. Teoricamente, você poderia fazer um filme sobre qualquer pessoa, mas, para isso, precisamos da autorização da Ancine (Agência Nacional de Cinema), que exije autorização da figura pública principal retratada — argumenta o diretor João Jardim, que prepara um filme sobre os últimos dias do ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954). — Felizmente, os familiares do Getúlio, neste caso, são totalmente conscientes de que a história dele faz parte da História do Brasil, não pertence a uma pessoa, e autorizaram a realização do filme.
 
PROJETOS DE LEI PODEM AJUDAR BIÓGRAFOS
 
Neste momento, há dois projetos de lei, um da deputada Manuela D’Ávila (PC do B-RS), outro do deputado Newton Lima (PT-SP), à espera de apreciação nos corredores do Congresso, e que podem facilitar o trabalho de cineastas e biógrafos. Ambos acabam com a proibição às biografias não autorizadas, e permitem o acesso irrestrito do brasileiro a informações biográficas de figuras públicas.
 
— Mas ainda seria preciso uma lei específica, estipulando que os políticos não têm direito sobre a História do país, para que os produtores possam trabalhar com tranquilidade, respondendo juridicamente nos casos em que os retratados se sintam prejudicados, como acontece em todo o mundo — pondera Jardim. — Esta questão do homem público é totalmente diferente da de um artista como Carmen Miranda, que tem uma produção baseada na sua criação artística pessoal.
 
Os números conquistados por produções nacionais recentes, como “Gonzaga, de pai para filho”, de Breno Silveira, sobre o relacionamento entre o sanfoneiro pernambucano e seu filho, o compositor Gonzaguinha, visto por mais de 1,5 milhão de espectadores, sugerem que há todo um território ainda a ser explorado pelo cinema local. A vontade de transformar a biografia cinematográfica em um produto de sucesso pode ser medida pela quantidade de registros de projetos que se acumulam nos departamentos da Ancine: Denise Saraceni começa a filmar este mês “Pixinguinha, um homem carinhoso”, sobre o autor do choro “Carinhoso”; Hugo Prata dirigirá um filme sobre Elis Regina; Diogo Boni levanta recursos para “Não aprendi dizer adeus”, que recria os passos de Leandro e Leonardo; e o estreante Daniel Augusto já deu início à pré-produção de “O peregrino: a melhor história de Paulo Coelho”, sobre o escritor.
 
Até mesmo Breno Silveira, que já havia enchido as salas do país com “Dois filhos de Francisco” (2005), sobre a trajetória da dupla pop sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano, visto por mais de 5 milhões de pagantes, já anda considerando a ideia de voltar ao que os americanos chamam de “biopic”. Os personagens que enchem os olhos do diretor têm potencial na memória do brasileiro médio: o navegador solitário Amyr Klink, o pugilista Éder Jofre e o cangaceiro Lampião.
 
— Eu arriscaria dizer que as cinebiografias, por um lado, suprem o interesse do grande público pela vida alheia e, por outro, o alimentam de uma certa esperança no sentido de que os personagens retratados sempre transformam as próprias vidas, se reinventam, superam adversidades — analisa Patricia Andrade, coautora dos roteiros de todos os filmes de Silveira. — São verdadeiros super-heróis humanos, que viram o jogo e se eternizam pelo talento, a determinação e a crença num ideal. E isso estimula as pessoas, de alguma forma elas se identificam.
 
É este caminho, o da identificação com o público, que segue “Trinta”, longa-metragem sobre o carnavalesco maranhense Joãosinho Trinta (1933-2011), que chega aos cinemas brasileiros no segundo semestre de 2013.
 
O filme de Paulo Machline vai resgatar a trajetória do artista plástico nordestino que transformou a escola de samba Beija-Flor em estrela dos carnavais cariocas entre os anos 1970 e 1980. Há também o projeto que Afonso Poyart (“2 coelhos”) está desenvolvendo sobre a vida do lutador de UFC amazonense José Aldo.
 
— É uma historia superação, um sujeito que veio de uma região pobre, numa estrutura familiar complicada e conseguiu sucesso e reconhecimento internacional. O filme atesta o espirito guerrilheiro e resiliente do brasileiro, como se o José Aldo, por ser brasileiro, conseguisse resistir mais à porrada. É um outro nível motivacional que só quem passou por dificuldades reais na vida é capaz de ter — assegura Poyart.
 
— A vida dos outros é um assunto de que todo mundo gosta! Ainda mais quando se trata de alguém que ficou muito famoso, muito rico ou muito maluco — faz coro o carioca Maurício Zacharias, autor do roteiro do filme de Paulo Machline.
 
— A biografia de alguém famoso já chega aos cinemas com um nível de reconhecimento gigantesco. Quando vem um filme chamado “Carlota Joaquina — Princesa do Brasil” (filme de Carla Camurati, que inaugurou a retomada, em 1995), ninguém precisa perguntar sobre o que se trata.
 
Coautor, com o diretor americano Ira Sachs, do roteiro de “Keep the lights on”, finalista da categoria do prêmio Spirit Award, o Oscar do cinema independente, Zacharias conta que, nos Estados Unidos, os produtores podem retratar no cinema qualquer pessoa pública, ou qualquer evento conhecido, sem precisar de autorização prévia de ninguém.
 
— Um filme como “A rede social”, do David Fincher, sobre o criador do Facebook, que envolve pessoas ainda vivas e eventos recentes, dificilmente poderia ser feito no Brasil, por causa da legislação dos direitos autorais. Daí ser mais fácil fazer filmes sobre personalidades já falecidas. E, em se falando de Brasil, música e futebol são os dois elementos mais fortes da nossa cultura. Acho que, à medida que o mercado brasileiro for se aquecendo, como já está acontecendo, a inclusão de políticos e estadistas será um desenvolvimento natural.
 
‘OS FILMES PERMANECEM’ 
 
Nem mesmo o relativo fracasso de “Heleno”, sobre o mitológico jogador de futebol Heleno de Freitas, visto por menos de 100 mil pagantes, desanimou seu autor, José Henrique Fonseca, a investir no filão. No momento, ele produz um documentário sobre a vida do pernambucano Almir Pernambuquinho (1937-1973), outro jogador controverso da história do futebol brasileiro.
 
— Fiz “Heleno” em cima de minhas convicções e incertezas, atraído pela bipolaridade do personagem. Prefiro seguir a intuição do que ir na certa, naquilo que já deu certo, um caminho que já foi trilhado. Os filmes permanecem, independentes de seu desempenho na época de lançamento — assegura Fonseca. — Se as cinebiografias vão virar moda no cinema brasileiro, não sei. Uma cinebiografia deve ter duas funções: trazer à luz algum desconhecido do público ou trazer uma nova leitura de alguém já conhecido. Qualquer outra opção pode tornar o filme muito chato ou panfletário.
 
Fonte: O Globo
 

 

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