A razão desse apoio é muito simples. A cultura é um instrumento poderoso de representação de cada sociedade e indispensável à formação de seu caráter. Cada grupo social, além de preservar valores universais, elabora em seu seio valores específicos, aqueles que são capazes de distingui-lo de outros, que lhe dê uma imagem e identidade. Dessas singularidades, nasce a solidariedade entre seus membros, a capacidade de se reconhecerem como únicos e se orgulharem disso.
Interessa ao Estado moderno representar uma sociedade com uma cultura poderosa, capaz de se impor como soft power no concerto das nações. O grande feito do imperialismo americano, no século passado, foi fazer com que o mundo consumisse seus costumes, filmes e canções como se fossem de todos. Através desses produtos, adotamos seu modo de vida como nosso.
Com a sofisticação crescente dos meios de produção e difusão do audiovisual, o Estado brasileiro obrigou-se a participar intensamente dessa atividade, a fim de que o poder vindo de fora não sufoque as forças de nossa criação. E inventou a Ancine (Agência Nacional do Cinema), órgão encarregado de estimular, regular e fiscalizar o mercado audiovisual, cujo poder de ação se nutre da renúncia fiscal.
A mais importante delas, a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), foi criada em 2001 por medida provisória e, a partir de 2011, com a Lei 12.485 (a lei que garante a exibição de produto brasileiro independente na televisão paga), passou a incidir também sobre os serviços de telecomunicações, uma vez que essas empresas são potenciais distribuidoras de conteúdo audiovisual (o celular é cada vez menos um telefone!).
Cerca de 89% dos recursos arrecadados pelo Fundo Setorial do Audiovisual, administrado pela Ancine para investir na atividade, vem da Condecine das Teles, um mecanismo que, entre 2013 e 2015, segundo manifesto da atividade, gerou 306 filmes de longa-metragem, 433 séries e telefilmes, 739 obras que correspondem a 2.867 horas de programação. Só de 2014 a 2015, 713 empresas se fortaleceram com essa política de investimento, criando uma infinidade de novos empregos.
As teles agora ameaçam com a interrupção desse progresso, rompendo os compromissos assumidos, sem estabelecer um diálogo ou propor alternativas de repactuação, ao entrar com um mandado de segurança contra a Condecine, para o qual já foi concedida uma liminar.
Há sempre espaço para novos pactos, mas a forma de travar esse debate não pode ser a violência unilateral de uma ação judicial; é preciso que todos os interessados se sentem à mesa, para rediscutir o mecanismo. “Essa ação das teles”, declara Manoel Rangel, presidente da Ancine, “é um raio em céu azul, à procura de causar tempestades em um setor que, até aqui, vinha conseguindo trafegar na contramão da crise”.
Se a liminar for cassada, como deve ser justo que aconteça, o Fundo Setorial do Audiovisual terá, em 2016, R$ 1,135 bilhão da Condecine (bem menos que o total das isenções oferecidas à indústria automobilística que engarrafa e polui nossas ruas), para aplicar na produção de todas as tendências do audiovisual brasileiro, dos grandes sucessos populares, como “Loucas para casar” e “Até que a sorte nos separe”, aos filmes com reconhecimento artístico, como os recentes “O menino e o mundo”, candidato ao Oscar deste ano, ou “Que horas ela volta?”, triunfo internacional premiado no Festival de Berlim. O audiovisual brasileiro poderá seguir reproduzindo com generosidade a diversidade do país, a respeitar o gosto do público e dar apoio aos que desejam mudá-lo.
Não é razoável que um setor da atividade econômica relevante como é o de telecomunicações, o quarto ou quinto maior de nosso PIB, num momento de grande dificuldade para o país, diga simplesmente que não tem nada a ver com isso.
Fonte: Coluna do cinesta Cacá Diegues/ Jornal O Globo